João Tordo: “Às tantas, comecei a confundir-me com as personagens destes livros”

“O Deslumbre de Cecília Fuss” é o mais recente livro do escritor e o último dos Lugares Sem Nome, uma trilogia que já conquistou os portugueses.

Uma mãe estranhamente ausente, uma irmã mais velha a viver o primeiro amor e um tio que sofre de demência vascular. É esta a família de Matias Fluss, um adolescente de 14 anos que “se vê a braços com um período difícil e doloroso, rodeado por uma família de características invulgares”, como explicou João Tordo.

“O Deslumbre de Cecília Fluss” marca o fim de uma trilogia que começou em 2015, com “O Luto de Elias Gro” e “O Paraíso Segundo Lars D.”.

Conversámos com João Tordo acerca deste que é o seu décimo livro, das personagens que se apoderam da sua vida, dos planos para novos livros e também da literatura feita em Portugal.

De certa forma este é um livro sobre um jovem e o seu processo de se tornar um homem?

É um romance sobre a juventude, onde um adolescente de 14 anos, Matias Fluss, se vê a braços com um período difícil e doloroso, rodeado por uma família de características invulgares – uma mãe estranhamente ausente, com uma língua própria, uma irmã mais velha a atravessar o primeiro amor, e um tio, chamado Elias, que sofre de demência vascular e vive isolado numa cabana do bosque. O livro é contado da perspetiva do adulto em que Matias se torna, um homem melancólico que não confia nas atribulações da memória, e completa a trilogia temática iniciada em 2015 com “O Luto de Elias Gro”.

Como foi o processo de escrita deste novo livro? Diferente por ser o culminar de uma trilogia?

Não foi muito diferente dos outros: escrever todos os dias durante cinco ou seis meses, e depois reescrever muito devagarinho. A diferença fundamental foi a dificuldade de escrever um romance que, além de ter a sua história própria, era ainda o final de um tríptico, e colocar-lhe centenas de pormenores e sentidos que vinham dos outros dois livros, formando um todo “circular”, onde o terceiro livro nos conduz de regresso ao primeiro.

Soube, desde o início, que esta seria uma trilogia?

Não surgiu por decreto, foram três histórias que apareceram mais ou menos ao mesmo tempo e, de repente, percebi que tinha ali um tríptico, não no sentido habitual – em que as narrativas se prolongam e continuam – mas num sentido mais original, de três narrativas distintas unidas por pormenores e detalhes e nomes e sentidos. Faz sentido ler os livros em separado, eles são independentes, mas faz ainda mais sentido quando se lê os três, ou melhor: encontra-se o sentido de cada um deles lendo os outros. A inspiração foi esta, acho eu: compreender que, entre um livro e outro, a separação é ilusória.

Como se sente ao chegar ao fim desta trilogia?

É muito recompensador e deixa alguma melancolia, algumas saudades. Passei três anos com estas personagens e este mundo onírico, tão parecido com este; passei este tempo todo a alimentar estas criaturas e a observá-las a cumprirem os seus destinos que, às tantas, comecei a confundir-me com as personagens destes livros, que são todas diferentes vozes de uma mesma inquietação fundamental. Assim, embora haja uma sensação de alívio – por ter chegado ao fim -, há também uma sensação de despedida que dói um bocadinho.

Tendo dedicado três anos da sua vida à escrita desta trilogia, como tem sido a sua rotina desde então? Há uma certa sensação de vazio?

Não estive três anos apenas a escrever – fui fazendo todas as outras coisas da vida quotidiana. Tenho outros trabalhos, relacionados com a escrita, mas não necessariamente com a escrita de livros. Por isso, desde que terminei tenho estado num interregno da escrita de livros, mas cedo irei retomá-la.

E o que se pode esperar desse regresso à escrita de livros?

Um livro de não-ficção, que quero muito escrever depois de dez romances. Mas estou também a pensar num novo livro de ficção, que quero escrever ao mesmo tempo.

Como vê o panorama atual da literatura nacional?

Está de boa saúde, temos autores incríveis a escreverem livros incríveis. Tudo gente relativamente nova, à volta dos quarenta anos, numa produção invejável. A questão da literatura não pode ser equacionada com o mesmo tempo dos fenómenos televisivos ou das redes sociais – os escritores, se é para serem avaliados, merecem o benefício do tempo, olhando para o que fizeram ao longo de uma década ou duas. A literatura não é o festival da canção nem o campeonato de futebol, é uma coisa muito diferente, muito mais frágil, que versa a experiência e condição humanas. Não se compadece com avaliações instantâneas, não tem o rótulo televisivo.

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